quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O Mandamento

Tocava música baixinho, num clima "ambiente", daqueles que fingem preencher pensamento:

Olhos nos olhos,Quero ver o que você diz.Quero ver como suporta me ver tão feliz.

O barman se aproximou dele, o único homem sentado sozinho no balcão, e tentou puxar assunto:

- Então, camarada, qual o seu tipo de de mulher?

O homem levanta a cabeça, sorrindo levemente para o barman, como quem não acredita que ele está puxando aquele assunto, mas responde, educadamente:

- Do tipo "livre e desimpedida", amigo.

O barman olhou para ele, estranhando sua resposta, e perguntou:

- Assim, sem preconceito?

- Totalmente sem - respondeu o homem. Eu só não me meto com mulher dos outros.

Ele pede mais uma cerveja ao barman, e continua o raciocínio:

- Coisa que eu aprendi na primeira comunhão e nunca esqueci: "não cobiçai a mulher do próximo".

Intrigado com tamanha dedicação a um dos mandamentos menos respeitados no país do futebol - e dos católicos, diga-se de passagem, mas respeitando o posicionamento do homem, o barman acenou com a cabeça em aprovação e foi servir outros clientes, pois o bar começava a encher.

O homem acabou sua cerveja, pagou e foi embora. Seu nome é Arthur Nobre.


...


O fato de Arthur Nobre respeitar o 10º mandamento pode não causar estranheza ao leitor. Muitos católicos juram fazer o mesmo; só juram. Arthur não.

Ele anda de cabeça baixa na rua para que seus olhos não se deleitem em pares de coxas alheios e decotes pululantes, em bocas carnudas e vermelhas e cabelos esvoaçantes. Não, não cobiçava a mulher do próximo. Não faria com outros com o que fizeram com ele.

Arthur era um homem triste; triste porque foi traído. Alguns meses atrás, percebera sua mulher com comportamentos estranhos: saindo em horários que não faziam parte de sua rotina, indo para mais encontros com as amigas do que o normal, chegando em casa tarde (na ponta dos pés!)procurando não acordá-lo, pois, coitado, acordava cedo para ir trabalhar. Cheirava a traição.

Um dia, ele a seguiu. Ela foi ao centro da cidade, parou em frente a um hotel vagabundo e esperou. Ele também esperou. Dez, quinze, vinte minutos, ele não sabe, pois perdeu a noção do tempo. Então, ele viu, de longe, um homem chegando. Não conseguiu determinar o rosto do mesmo. Ele se aproximou dela, a beijou longamente, e os dois entraram no hotel. Que decepção para o pobre Nobre. Ele ficou arrasado. Pensou em entrar no hotel, fazer escândalo naquela casa de sacanagem, mas, não conseguiu. Era um homem sensível, fraco à dor do coração. Não quis saber quem era o outro homem, foi pra casa, arrasado. Chegando em casa, arrumou uma mala e foi embora, não queria mais ver a desgramada. Passou a noite em qualquer bar da cidade.


Arthur Nobre tinha um bom amigo. Pedro Clemente: o Pedrão. Pedrão era o contrário de Nobre; se esse era um homem sensível, Pedrão era um bruto, um touro, sempre bufando. Se Arthur era um homem fiel, casado e caseiro, Pedrão era um mulherendo incontestável que odiava compromisso. Mas, foi ele a quem Arthur foi pedir abrigo na tempestade da sua vida. "Pedrão mora sozinho", pensou Arthur, "Ele não vai se importar que eu passe uns dias lá, até que eu arrume um cantinho pra mim". E Pedrão o recebeu, de braços abertos. Apesar de os dois não se verem coisa de meses, pois Arthur andara muito ocupado com coisas do trabalho, a velha amizade continuava a mesma. Era o que pensava Arthur.


Na mesma noite em que Arthur chegara à casa de Pedrão, e assistia TV na sala, com seu calção do botafogo 70' e meias. A chave girou na porta. Bem na hora, ia passar clássico na TV e Arthur não ia gostar que Pedrão perdesse aquilo. Ele se levantou, andou até a porta para receber o amigo, e, de repente, surge aquela morenaça pela porta. Arthurgelouandoupratrástropeçounocentrobateuacabeçanosofá. A moça veio correndo ampará-lo e ele continou se afastando, se arrastando mesmo. Até que Pedrão surge pela porta:

- Que porra está acontecendo aqui?!

Arthur se levanta, aponta o dedo em riste para a mulher:

- Essa mulher, meu amigo! Ele entrou na tua casa, tem a tua chave! Acho que queria te roubar! Provavelmente planejava a meses, te espionava!

A mulher olha para Arthur, pasmada, e não articula uma palavra. Percebendo a confusão que se instaura, Pedrão começa a explicar:

- Calma, Arthur. Eu saí na pressa para trabalhar e esqueci de te avisar: estou morando com alguém agora - então, Pedrão anda e se abraça com a mulher. Esta é Luciana, minha namorada. Lú, este é Arthur, meu melhor amigo.

Arthur não podia acreditar. Pedrão, morando com alguém. Pedrão, compromissado. Coisa demais para sua cabeça. Tentando não perder a postura mais uma vez, se aproximou de Luciana, se desculpou pelo mal-entendido.

Pedrão balançou a cabeça, em aprovação, e disse:

- Bem, acho que vai passar clássico, não é?

Sentou no sofá. Luciana, foi a cozinha, pegou umas cervejas para todos. Eles se acomodaram. O jogo rolou, conversas também.

Arthur viu que mulher era Luciana. Primeiro: era botafoguense, como ele e seu amigo. Segundo, era prestativa e educada. Além de, "que Deus me ajude a não ficar notando isso", pensou, ser espetacularmente linda. Também, pudera: esse era o tipo de mulher do Pedrão: mulherão. Coxas grossas, seios rígidos e impinados, um bumbum... parou de pensar por aí. O 10º mandamento.


Passaram-se os dias na casa de Pedrão. Arthur foi ficando, ficando. Sua ex-mulher já descobrira que ele estava lá, mas, ele não atendia seus telefonemas e evitava vê-la na rua. Pedrão foi visitá-la pessoalmente para dizer que não procurasse seu amigo. Bom amigo, seu amigo Pedrão. E boa mulher, a Luciana.


Essa estava sendo extremamente prestativa com Nobre. Sempre lhe trazia quitutes, cervejas, tinha uma boa conversa. Mesmo quando o Pedrão não estava por perto, lhe fazia companhia. A amizade entre eles dois começou a crescer. Pedrão trabalhava muito, era taxista, passava grande parte do dia - às vezes algumas noites - fora. Arthur era funcionário público, com expediente de seis horas, exatamente como Luciana, por isso os dois tinham tempo de sobra em casa. Para sair também, e saíam juntos. Arthur já a olhava como a irmã que não tivera na infância. Mas, Luciana não.


Um dia, Arthur saía do banheiro, toalha na cintura, cantando uma canção qualquer:

"Quando chego em casa nada me consola..."

Quando de repente, encontra Luciana na sala, de baby-doll vermelho, encostada no sofá. Olhava para ele lascivamente. Perigosamente. Ele, fingira que não percebera, passou, sorrindo, tentando não olhar para aquelecorpolindoMEUDEUS! Ela segurou-o pelo braço, encostou os lábios no seu ouvido e falou... safadezas. Cabeludas. Ele se afastou, "vade retro, Satanás". Correu para o quarto e se trancou. Só saiu de lá quando Pedrão chegou em casa. Jantaram juntos, Luciana fingia que nada havia acontecido e Arthur lá, nervoso e abatido. Pedrão perguntava ao seu amigo o que acontecera e esse respondia que nada, era o estômago fraco, bla bla bla. A noite, Arthur ouviu Pedrão e Luciana fazendo amor, e enlouquecia, não dormiu. E assim, passaram-se os dias. Os assédios de Luciana cada vez mais frequentes, Arthur cada vez mais abatido. Ele já mal ficava em casa, e já procurava novo canto para morar. Foi ao bar, tomou umas e outras e saiu, de pileque. Foi ao centro, sem perceber, andava em direção aquele hotel vagabundo do centro, onde pegara sua ex-mulher no flagra. Desta vez, andava mais perto do local, bêbado, acabado, sentara na calçada, como um qualquer.


De repente, surge ela, sua ex-mulher. Radiante, como sempre fora. Passa por ele, não o nota. Podia ser qualquer bêbado, qualquer mendigo. Estava escuro e aqueles olhos tão felizes só olhavam para dentro de si. Ele ficou com raiva, muita raiva. Pensou em se levantar, esbravejar com ela, dizer mil insultos. Quando tentava se levantar, viu que um táxi parava em frente ao hotel. O motorista saiu e andou em direção à sua ex-mulher. Eles se beijaram, exatamente como da outra vez, e ele viu, por estar perto deles e esquecido pela realidade. Viu a cara do homem, viu o motorista, viu Pedrão. Eles entraram no hotel e sumiram.


Arthur chega na casa do seu amigo fedendo a cachaça. Lá, encontra uma Luciana linda, maravilhosa, cheirando a bebê. Uma garrafa de champagne na mesa. Pedrão trabalharia de madrugada naquele dia. Ele olha para ela, para a garrafa e cai. Não num sentido literal, mas, biblicamente falando. Cai e gosta. Cai e fica feliz, satisfeito. Cai e sobe ao céu.


...


Tocava música baixinho, num clima "ambiente", daqueles que fingem preencher pensamento:

"Venha, meu amigo, deixe esse regaço, brinque com meu fogo venha se queimar"

O barman se aproximou dele, o único homem sentado sozinho no balcão, e tentou puxar assunto:
- Então, camarada, qual o seu tipo de de mulher?

O homem levanta a cabeça, sorrindo levemente para o barman, e responde, educadamente:

- A dos outros, meu chapa, a dos outros.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Give me a Break(fast)

tchonin-onin-onin-onin-onin-onin-onin...
tchonin-onin-onin-onin-onin-onin-onin...

"Isso, meu caro, é o som da bateria do seu carro descarregada"

Disse para si mesmo. Cabeça encostada no volante, pensou que seu dia ruim poderia terminar ruim daquele jeito, com ele esquecendo os faróis do carro ligados enquanto passa duas horas pagando contas.

Mão no bolso, pensa que talvez o outro dia fosse melhor para resolver aquilo. Já era tarde, seu corpo pedia cama, só.

"Se quiserem tentar roubar essa lata velha, podem tentar!"

Pensa, puto, e vai embora para casa de ônibus. Uma chuva fininha começa a cair.

"Merda! Dá um tempo!"

Um tempo; nada como um dia após o outro, né?

Ou não.

...

No outro dia, seu bom amigo o leva lá no canto onde ele deixou a lata velha. Foram fazer a velha chupeta. (Não entendam isso mal, meu caros leitores, já que a vida desse nosso personagem já está bem difícil).

Ao chegarem lá, deparam com uma família de mendigos dormindo dentro do carro.

"Puta merda! Deixei o carro aberto!"

Lembra nosso (azarado) personagem. Quando chega lá, o casal ainda dorme, mas o filho pequeno está muito bem sentado no banco de trás. Quando vê o homem se aproximando, abre um sorriso e diz:

"Oi, moço"

"Eh... oi?"

Responde nosso (desconcertado) personagem.

"Tem pão aí?"

"Pão?"

"É, pão"

Ele olha intrigado pra o menino. Intrigado. Pensativo. Pesaroso. Penoso. Vira de costas, entra no carro do amigo e vai embora. Deixa a pobre família dormindo no carro.

...

Um senhor e uma senhora acordam; sujos, fedorentos, sonolentos, famintos. Encontram, encostado no painel do carro onde dormiam, (des)confortáveis, um saco com pão, queijo, salame, uma garrafinha de café e alguns copos descartáveis. Intrigados, olham para o banco de trás do carro e vêem seu menino, feliz, comendo pão com queijo e balançando os pés.

"Quem dexô isso aqui, minino?!"

O menino sorriu, alegre, e respondeu

"Foi o moço, pai. Acho que era anjo"

...

Nada como um dia após o outro.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Diálogos da cachaça

Andando pelo corpo da Cidade das Desgraças, vai embora Zé Qualquer, anda pelas ruas Criatura Zé, sem saber, exatamente o que quer. Ele está acompanhado de sua eterna companheira, mãe de todas as horas, pau pra toda obra: a excelentíssima senhora Cachaça dos Perdidos. Sempre de sorriso no rosto, bom humor e quase nenhum senso de juízo e realidade na cabeça, vagueia por ali e por aqui.
De porre por aqui, ele encontra uma moça travestida de mulher, cheia de pinturas e rostos numa viela escura de Desgraças. Ela, encostada num canto, chora e desfaz todas as suas máscaras noturnas básicas e complicadas.
Comovido, pois os bêbados como Zé Qualquer sentem a dor da criatura alheia, vem ao lado da moça e pergunta:
- Pppu que a moci munita chora?
Ela, machucada pelos Fulanos da Noite, já não enxerga a possível compaixão de nosso trêbado personagem e responde de forma quase cruel:
- Num sei, homi. Choro porque chorar aqui nessa Desgraças é a coisa mais normal pra se fazer. Só não é mais do que beber - conclui ela, alfinetando o quase cidadão na sua frente.
Quando ela percebe o modo como havia falado com o pobre Criatura, com toques de mãos e carícias típicas de sua personagem, tenta se desculpar. Qualquer só sorri, beija a testa da menina mulher e diz, espalhando aquele aroma [a]típico pelo lugar:
- Cê tá errrad muça! Chorar é mai nomal sim, pusque cachaça - beija sua companheira - é a láguima dos perdido.
Toma um trago e segue seu caminho.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Paz, eu quero paz

Um homem comum, muito comum. Nome comum - José, Antônio, Manoel, João ou qualquer outro. Um nome, geralmente, faz um homem. E se isso também quer dizer posição social, ele era o próprio exemplo da máxima. Pouco mais que dois mínimos numa empresa que não dava perspectiva nenhuma de crescimento para o aluno que foi laureado e agora realizava atividades rotineiras.

Altura abaixo da média, físico franzino somado a uma barriguinha típica dos sedentários. Nada que chamasse atenção, tocava um violão desafinado, nunca foi destaque nos esportes, não era popular. Pouquíssimos amigos e amores não correspondidos.

Na sua solidão, ou mergulhava na piscina e ficava lá submerso e encolhido desfrutando o silêncio - uma antiga mania que trazia desde criança - ou passava horas repetindo no seu som "Feels So Good", um instrumental belíssimo que o trazia uma alegria entorpecente, quase tóxica. Um de seus simples sonhos era apreciar tal música sendo executada ao vivo.

O homem comum se sentia triste, impotente, vagando no tempo. Desesperado.

Mas um dia, nossa sorte muda. Ou deveria.

Cargo de gerência, rapaz! Um aumento, um destaque! Uma noite com a morena alta e 'grande' que venerava. Um jantar que ele comeu de tudo! Outra noite, sucesso na rodinha de violão no lual. O reconhecimento artístico foi encher sua agenda de novos números.

Sucesso profissional, mulheres, amigos. Tava bom demais para ser verdade. Mas É verdade, homem! Aproveita!

Faltava os sonhos, ou pelo menos um e os dias estariam perfeitos.

Era quinta de Jazz no bairro histórico. Atração principal: um trompetista. O show já ia sendo impecável, até que A MÚSICA. O som emocionado do trompete e o swing que a música apresentava enchenram o homem de paz, completa paz.

Saiu no seu carro pela Via Costeira. Seguia as estrelas, contemplava o céu e desfrutava a paz. Desceu pra praia. Será que a paz ia durar? Ele se sentia gente, não mais fantasma. Ele era visto, conhecido. Mas amanhã o sonho podia expulsá-lo.

Correu desesperado. Foi buscar a velha mania de criança, mas a piscina agora era o mar. Pulou, submergiu, se encolheu. Apreciou o silêncio e sentiu a paz. E viveu a paz. Afundou-se nela e nunca mais.